O DIREITO MATRIMONIAL CANÔNICO
1. Generalidades
O objetivo destas páginas é direcionado para o Direito Matrimonial Canônico e não para o Direito Canônico no seu todo. Visa a apresentar noções teóricas e exemplos práticos relacionados aos trabalhos desenvolvidos nos Tribunais Eclesiásticos, enfocando especificamente as causas em que se analisa e discute a validade ou nulidade de determinados matrimônios católicos, por solicitação dos próprios contraentes.
Fiel à sua tradição e à doutrina de Jesus Cristo, a Igreja Católica não admite o divórcio, no entanto reconhece que, por diversos motivos, muitas vezes um casamento celebrado com todo aparato tradicional pode envolver elementos de nulidade. Quando as partes contraentes, ou uma das partes apenas, levanta a suspeita de que o seu casamento pode ter sido nulo, o Tribunal Eclesiástico ouve o(s) interessado(s) e, havendo um fundamento jurídico canônico nesta suspeita, abre um processo canônico para analisar todas as circunstâncias envolvidas naquele matrimônio e, ao final, declara por sentença se o consentimento foi válido ou nulo.
Muitas pessoas de formação religiosa que, por circunstâncias existenciais, não puderam levar adiante seus casamentos e terminaram por resolver a sua situação apenas civilmente, poderão também regularizar a sua situação perante a Igreja submetendo seus casos particulares à apreciação pelo Tribunal Eclesiástico. A vivência junto a estes Tribunais demonstra que, em grande parte dos casos, um matrimônio fracassado tem na sua origem um fundamento para declaração de sua nulidade. É o que se procurará demonstrar adiante, na abordagem das causas mais frequentes de nulidade dos casamentos religiosos.
2. O conceito de matrimônio
Iniciamos as considerações teóricas com o próprio conceito do matrimônio católico, porquanto às vezes é possível vislumbrar pela análise dos elementos constitutivos deste conceito se um tal matrimônio esconde uma causa de nulidade.
O Concílio Vaticano II, na Constituição
Pastoral Gaudium et Spes
(traduzindo, Alegria e Esperança), no número
48 trata do matrimônio, apresentando seus elementos
essenciais:
"A
íntima comunhão de vida e de amor conjugal, que o
Criador fundou e dotou com suas leis, é instaurada pelo
pacto conjugal, ou seja, o consentimento pessoal irrevogável.
Dessa maneira, do ato humano pelo qual os cônjuges se doam e
recebem mutuamente, se origina, também diante da sociedade,
uma instituição firmada por uma ordenação
divina. ... Esta união íntima, doação
recíproca de duas pessoas, e o bem dos filhos exigem a
perfeita fidelidade dos cônjuges e sua indissolubilidade".
O Código de
Direito Canônico, no cânon 1055, igualmente perfilha os
elementos constitutivos do matrimônio, da seguinte forma:
"O
pacto matrimonial, pelo qual o homem e a mulher constituem entre si
o consórcio de toda a vida, por sua índole natural
ordenado ao bem dos cônjuges e à geração
e educação da prole, entre batizados foi por Cristo
Senhor elevado à dignidade de sacramento."
E no cânon 1057,
complementa esta descrição dos elementos essenciais do
matrimônio nos termos seguintes:
"O
consentimento matrimonial é o ato de vontade pelo qual um
homem e uma mulher, por aliança irrevogável, se
entregam e se recebem mutuamente para constituir o matrimônio."
Estes elementos essenciais contidos nestes conceitos são de extrema importância, conforme se verá adiante, na análise dos casos concretos. O desconhecimento ou o descompromisso com alguns destes elementos essenciais são as causas mais frequentes de declaração de nulidade dos matrimônios.
3. A celebração do matrimônio
O conteúdo básico do matrimônio é a manifestação expressa e bilateral de um acordo de vontades, feito entre um homem e uma mulher, à maneira de um contrato de natureza especial, formalizado perante a comunidade eclesial e na presença das testemunhas, que conhecem os contraentes e podem atestar a sua idoneidade e sua maturidade para a prática deste ato de tamanha responsabilidade.
Dito isto, é importante esclarecer que o matrimônio é celebrado pelos nubentes. Não é correto dizer que o padre 'celebra' o casamento, os celebrantes são os próprios noivos. O sacerdote ali presente é também uma testemunha, sendo que ele representa a Igreja, enquanto as outras testemunhas representam a sociedade. O sacerdote ouve e abençoa o compromisso do casal, mas a sua função ali é a de ser uma testemunha oficial, escalada pela Igreja. Na verdade, o que ele faz é verificar se tudo está sendo cumprido de acordo com as normas canônicas e assim garantir a validade do matrimônio como sacramento, de acordo com o ensinamento da Igreja.
É exatamente esta característica da sacramentalidade que torna o matrimônio um contrato especial para a vida toda, indissolúvel por qualquer vontade humana. O fato de ter sido elevado por Jesus Cristo ao grau sacramental, confere ao compromisso matrimonial um sinal sensível e eficaz da graça divina, simbolizando a união de Cristo com sua Igreja, talqualmente outrora se usava a figura da Aliança entre Javé e o seu povo.
4. Validade do Matrimônio
Celebrado com todas as formalidades canônicas,
o matrimônio é considerado válido.
No entanto, há dois requisitos inseridos no contexto desta
validade:
a) o matrimônio ratificado mas não consumado (em latim, matrimonium ratum sed non consumatum) - é a situação que ocorre quando os nubentes já manifestaram o consentimento, isto é, já celebraram o matrimônio perante o sacerdote e a comunidade, mas ainda não realizaram o ato conjugal (a conjunção carnal, pelo qual os dois se tornam uma só carne);
b) o matrimônio ratificado
e consumado (em latim, matrimonium
ratum et consumatum) - quando os
esposos já realizaram, pelo menos uma vez, o ato conjugal de
modo humano.
Esta observação é importante, porque a falta de consumação do matrimônio pode ser alegada como fundamento para declaração de sua nulidade.
Além deste caso específico, há ainda outras circunstâncias que podem tornar o matrimônio inválido, apesar das aparências de normalidade. Pode ocorrer que um dos contraentes, em seu íntimo, está sendo forçado a manifestar o seu consentimento, embora externamente ninguém perceba isto. O consentimento somente será válido quando for manifestado em plena harmonia da palavra dita e do ato de vontade que a acompanha.
Em qualquer caso, a nulidade de um matrimônio celebrado com a observância de todos os requisitos canônicos somente poderá ser declarada por um Tribunal Eclesiástico, após análise profunda e detalhada de todas as circunstâncias que envolvem cada caso concreto.